Lo-Cal, Hi-Fiber
Se se fôr a São Francisco vai-se com flores no cabelo. Eram essas as palavras cantadas por Scott McKenzie naquela que se tornou uma das canções mais enervantes da hippilhada. Ainda por cima a letra da maldita coisa, são uns balbucianços sem grande sentido mas que dão a entender que a geração dos amantes da paz e do amor reconhece-se por ser florida, ou uma merda do género.
É por causa dessa história das florzinhas, icónica da contracultura hippie, que essa cidade da Gringolândia se tornou um centro de activistas de defesa, apoio e orgulho das diversas minorias e diferenças, logo um um bom sítio para crossovers e crossdressers.
Epá, mas experimentem lá passear por Polk Gulch (que é o Conde Redondo lá do sítio) com grinaldas na cabeça, a ver o que é que vos acontece...
O mais provável é acabarem a dar ao rabo e, com sorte, talvez ganhem uns trocos.
E há mais alguma coisa de interesse a dizer sobre São Francisco? Hum, vejamos... Pois... Tem uma ponte parecida com a nossa ponte 25 de Abril (Salazar não se diz, que é reaccionário). E...
Aaaah! Pois 'tá claro! Foi na zona da Bay Area de São Francisco que surgiu a expressão mais forte do Thrash Metal. Claro que isso é um acontecimento histórico menor mas não me posso esquecer que este é um blog sobre música e não de paneleirices.
Então, como é que se conjuga o melhor desses dois mundos, segundo a associação lógica que já antes estabeleci entre o crossdressing e o crossing over musicalmente? Ora, em São Francisco sê franciscano logo, em vez de crossovar tocando Hardcore afunkalhado, crossôva-se tocando Thrash Funk Metal. E é neste contexto que vamos falar dos Mordred.
Já agora, ficam a saber que o Mordred é um personagem do ciclo arturiano, mais precisamente um vilão, filho incestuoso do Rei Artur e da sua meia-irmã Morgana Le Fay. E, depois disto, ainda tenha alguém a lata de me vir dizer que as minhas conversas sobre drogas, funkeiros, prostitutas e travestis são um deboche!
Os Mordred, a banda não os guerreiros, eram uns rapazes simpáticos que se tentavam integrar no meio dos thrashers rufias da bay Area escondendo, para tal, as suas verdadeiras inclinações. E que mais podiam eles fazer, rodeados de homens duros e fodidos para a porrada (pois o que os thrashers mais gostavam de fazer era ir atrás dos travestis do Glam para lhes desfazer a permanente)?
Assim, os Mordred, para não destoarem, lançaram um primeiro álbum de Thrash Metal: «Fool's Game», em 1989. Este, por competente que seja, perder-se-ia no meio de dezenas de melhores exemplos de Bay Area Thrash, não fosse pelas duas músicas Funk nele incluídas: o original "Everyday's a Holiday" e a reinterpretação de "Super Freak", do pervertido sexual cocainómano Rick James. Estas funkalhadas eram floreadas pelos scratches do DJ de serviço.
Já agora, aproveitando que tenho a vossa atenção e que vou embalado, espeto aqui também o "Super Freak", mas na versão original do Rick James, cujo teledisco é um bom exemplo do kitsch do Funk cocado.
No final dos anos 80, em nome do espírito crossover que animava muitas bandas de Thrash gringas (e não só), houve algumas experiências Funk por parte daquelas, desde o ajavardanço dos Nuclear Assault com "Funky Noise" a alguma integração de ideias e harmonias funkeiras pelos Death Angel. Sim, porque Crossover, implica passar para o outro lado - o intercâmbio não pode ser resumido ao Punk e ao Metal, como já foi antes escrito nestas páginas.
No entanto, nenhuma destas bandas deu o passo seguinte que os Mordred deram, saindo do armário e assumindo totalmente o seu Thrash Funk Metal, no segundo álbum, «In This Life», de 1991.
Repleto de slaps de baixo, breaks funkeiros, vocalizações de rap e scratchalhada quanto baste (o DJ agora está na banda a tempo inteiro), o disco mesmo assim não abandona as suas raízes, sendo essencialmente uma obra de Thrash Metal bastante técnico.
É como se os moços se estivessem a passear por Polk Gulch, vestidos a rigor e com a depilação feita, mas não quisessem disfarçar a barba, podendo sempre regressar para os braços dos companheiros de origem que, como é sabido, sendo homens a sério, exigem que os seus tenham a barba rija.
Assim, o travestimento destes thrashers funkeiros foi conseguido mas é como se a equipa de psicólogos que os avaliou não tivesse dado a luz verde para a operação completa.
Esse tão desejado sonho começa, finalmente, a tomar forma no ano seguinte, 1992, com o lançamento do EP de seis músicas «Vision».
Neste, as raízes thrashalhosas foram definitivamente abandonadas, em favor de um Funk Metal de contornos progressivos.
Para mal dos pecados dos moços, o suavizar do som chegou demasiado tarde para apanharem o comboio do sucesso dos Living Colour e afins, até porque, então, já o panorama musical mudara para o Grunge e para o Rap Metal.
E claro que serem editados pela alemã Noise Records, que não devia saber muito bem o que fazer com estes transformistas, também não ajudava nada.
Em 1994, os Mordred, autênticas Marias-vão-com-as-outras, lançam o seu último álbum, «The Next Room», procurando desta vez adaptar-se à sonoridade Grunge – que, por essa altura, já estava a implodir…
Esta falta de timing crónica, bem como a incapacidade da Noise Records para promover o disco são de lamentar, uma vez que este é o melhor trabalho da banda e passou completamente despercebido.
Neste álbum, conjugam-se, de forma equilibrada, as diferentes tendências já antevistas (Thrash, Funk, divagações progressivas) com um recém-descoberto gosto por um Hard Rock mais tradicional, mas aproximando-se do chamado Rock alternativo, originando um disco de canções memoráveis.
Para que tão delicada operação fosse um êxito a banda teve que amputar um dos seus membros originais, o vocalista Scott Holderby, substituindo-o por um cantor mais adequado à sua verdadeira e desejada identidade musical, Paul Kimball. Esta excisão era uma necessidade óbvia, uma vez que a nova voz, simultaneamente rugosa e melódica, ilustra muito melhor a dualidade de género dos Mordred.
E foi assim que os Mordred, na sua pele de Maria Galdéria, se deixaram conduzir, nos braços do seu galã rumo ao esquecimento...
O aprumado senhor que, no seu smoking, se fazia passar por um representante das grandes editoras era, afinal, um proxeneta de North Beach e é por lá que, desde então, os Mordred podem ser vistos a actuar todas as noites, tocando covers funkeiras enquanto tentam evitar os apalpões dos bêbados.